quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Indianismo romântico

Fonte: O IMAGINÁRIO DA NAÇÃO NAS ALEGORIAS E INDIANISMO ROMÂNTICO NO BRASIL DO SÉCULO XIX, de Solange Padilha.


"A temática do Romantismo nas artes plásticas sofreu importante influência da literatura e da história. As imagens de Victor Meirelles, Pedro Américo, Rodolfo Amoedo, Augusto Rodrigues Duarte, José Maria Medeiros, irmãos Bernardelli, Chaves Pinheiro evocaram a brasilidade emergente evocando José de Alencar (Iracema, O Guarani, Ubirajara, o Jesuíta), Gonçalves Dias (I Juca Pirama), Gonçalves de Magalhães (Confederação dos Tamoios); Araújo Porto Alegre e Pereira da Silva (na revista Niterói - 1836 - 1892) e também do poema Caramuru (1781), escrito ainda no século XVIII por Frei José de Santa Rita Durão, um épico da fundação de Salvador e das peripécias de Diogo Álvares Correia, obra inspiradora da estatuária “vinte e oito de setembro”, citada no último parágrafo.

As características formais dos românticos da Escola Imperial de Belas Artes deram ênfase à expressividade da luz, ao traço orgânico e as cores vibrantes que enalteciam o sentimento apaixonado de uma estética oposta à precisão e nitidez fria e exemplar do neoclássico. O paradigma da emoção sobre a razão valorizou ainda a beleza da mulher indígena, aspectos religiosos e morais, a bravura e pureza da alma humana.

A morte foi um dos temas preferidos do indianismo, com uma grande quantidade de quadros representando o indígena morto em conseqüência da sedução amorosa ou de batalhas. O Último Tamoio (1883 – óleo sobre tela - 180 x 260cm) foi realizado por Rodolfo Amoedo em Paris durante o período que ele freqüentou ateliês de acadêmicos franceses. Representa a morte de um índio numa praia deserta do Rio de Janeiro, com um jesuíta que se debruça sobre ele. Este quadro traz subjacente a realidade histórica da Confederação dos Tamoios (1554-1563) cujo termo, não corresponde à designação de um grupo étnico, mas o conceito político que significou para os confederados tupinambás, aimorés e goitacazes revoltados contra a escravidão e o julgo dos portugueses no século XVI, “aquele que é mais antigo”. A realidade histórica por detrás da cena tem forte conotação subversiva e numa leitura atual o quadro conjuga o processo de resistência histórica dos Tamoios ao teor sócio-político dos “mais antigos”.

Entretanto, a intenção de louvação da resistência social ou política, ultrapassaria as intenções de um artista acadêmico como Amoedo. Sintonizando o quadro com a época, lembramos que o tema inspirou o longo poema de Gonçalves de Magalhães, autor e obra consagrados por Pedro II pela maneira clássica de abordar o indígena. O retorno ao passado da leitura romântica coloca o elo sentimental que une religioso e índio, a idéia de superioridade de uma cultura sobre uma outra. Romântico e defensor do status quo, Amoedo parece exaltar a compaixão cristã, a dor cujo simbolismo une o padre ao “filho”, muito provavelmente, aludindo a morte do mundo selvagem.

Na concepção formal do quadro, o índio ocupa grande parte da cena, atraindo nosso olhar para o centro da tela. Uma linha diagonal traçada da esquerda para a direita e outra de cima para baixo reforçam aspecto do corpo sendo amparado pelo jesuíta. O cenário da praia, as gaivotas ao longe, o detalhe da tanga desfeita, o sentimento melancólico e a morte aproximam o Último Tamoio do quadro Moema de Victor Meirelles (1862 – 120 x 190 óleo s/ tela).

A referência à personagem apaixonada por Diogo Álvares Correia, morta afogada pelos esforços de seguir o barco que rumava para a Europa com seu amado e Paraguaçu, é a obra literária de Santa Rita Durão, cujo pano de fundo é também a fundação de um território, através da conquista, o da cidade de Salvador. O idílio entre Caramuru e Paraguaçu celebra a unidade colonial quase perfeita, tendo como coroamento a conversão de Paraguaçu ao catolicismo. Moema representa, dentro do triângulo amoroso, as faces mórbida, apaixonada e sensual do feminino. No quadro de Meireles, o corpo inerte de Moema, se destaca do espaço inferior direito e ocupa o centro da tela através de uma linha diagonal que corre da direita para a esquerda e outra linha que avança de baixo para cima, onde a cabeça e os cabelos formam um leque aberto em movimento descendente, ocupando o espaço inferior do quadro. A oposição simétrica que existe entre esta obra e o Último Tamoio é clara na composição dos corpos e outros três elementos aumentam a semelhança e intensidade dramática que existe entre eles: o detalhe da tanga que se desfaz conotando o significado da nudez; a sinuosidade do movimento do corpo que aumenta a sensação de abandono e o cenário da praia que acrescenta à morte a subjetividade do retorno à natureza, à areia, terra, chão. Em ambos os quadros, o modelo foi construído conforme fortes convenções do Romantismo, assim como uma obra do mexicano Felipe Gutiérrez, A caçadora dos Andes (1891) que lança mão de recursos análogos para representar a morte de uma nativa solitária. Porém, a semelhança dos detalhes na obra de Amoedo parece decorrer de uma citação de Meirelles, seu mestre.

Augusto Rodrigues Duarte também se inspirou na literatura, mas desta vez no romance homônimo de René Chateaubriand (1768 - 1848), publicado em 1801, Exéquias de Atalá (1878 – óleo sobre tela, 190 cm x 244, 5cm), um clássico da literatura universal. A obra aborda o amor impossível da índia Atalá por Chactas. A moça encontra o amado e o salva da tortura. Os dois se apaixonam e fogem para o deserto. Entretanto, Atalá vive o conflito entre a fidelidade ao Deus católico e a dedicação à paixão humana. A oposição dilacerante entre amor e fé, entre mundo original e valores ocidentais, culmina com o suicídio de Atalá.

No quadro, dois elementos sinalizam a perda da identidade indígena: a pele embranquecida e o crucifixo entre as mãos da personagem. O branqueamento era muito comum como atributo de beleza referenciando o padrão europeu. A cruz é o símbolo que prevalece sobre a união e continuidade da identidade indígena.

Iracema (1865) é um dos principais romances de José de Alencar. O tema da fundação do Ceará adquire amplitude continental com o nome da heroína Iracema, que é um anagrama de América. A virgem da nação Tabajara, sacerdotisa de Tupã, guardiã das águas de jurema e dos frutos do sonho, um dia vê chegar à sua aldeia, o colonizador português Martim, pelo qual ela se apaixona, apesar dele ser amigo da tribo Potiguar, inimiga de seu povo. Desse amor nasce o herói mestiço Moacir. A estilística do romance de Alencar é vigorosa e Machado de Assis considerou-a como um poema em prosa:

“Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba.
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros;
Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?
Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora.
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas:
-Iracema !

José Maria Medeiros inspirou-se no amor para criar a imagem de Iracema. Outra vez a praia é o cenário onde a personagem vaga solitária ao lado do arranjo de flores de maracujá, símbolo do sentimento que a possui. Iracema representa sem disfarces, a mulher de origem indígena Ela é a imagem do “outro” e nudez e solidão a opõe à mulher branca. Ela é também o oculto, o conhecimento enigmático de forças da natureza, que ela domina pelo conhecimento da magia e da propriedade das raízes. O feminino apaixonado aqui representa o mito sacrificial da mulher indígena que desaparece para “dar a luz” ao povo mestiço, ao Brasil.

Embora a representação e dramaturgia romântica não se proponham a atingir a realidade dos índios, nem muito menos assumir uma postura crítica da realidade, a insistente repetição da morte nesses quadros, nos remete à violência da época. Olhando seus personagens em conjunto, eles têm em comum a perspectiva de estarem apartados da realidade, emudecidos no tempo ou no espaço, entregues à natureza como num último reduto. Modelos de uma iconografia que recorta o presente pelo passado, expressam a melancolia do indianismo e são também fragmentos romantizados que exprimem a malha de sentidos submersos na impotência. De certa forma, é possível ver nessas imagens metáforas da perda de identidade e inocência: máscaras dos massacres que aconteciam no segundo império.

Com uma outra linguagem, crua e objetiva, temos na mesma época, a fotografia atuando como instrumento da “ciência” nas três fotografias que Marcelo Morel apresenta como sendo, provavelmente, as primeiras tiradas dos índios Botocudos em Paris (1844). São imagens que formulam uma maneira de “mostrar” o selvagem e a tentativa do fotógrafo de nos dar uma imagem domesticada do índio, através da roupa, da pose, do enquadramento etc. Como “portrait” etnográfico do século XIX, a neutralidade do estúdio fotográfico trás para a cena a condição de objeto do índio e pulveriza aspectos culturais e personalizados daqueles seres humanos. A domesticação se transfigura em violência no olhar que diz “mais sobre o poder do colonizador do que do indivíduo e sua cultura 6”.

Com uma linguagem moderna e atrevida, o desenhista e jornalista Ângelo Agostini se coloca como crítico da produção dos artistas acadêmicos e do regime monárquico e abre espaço na imprensa de oposição, sobretudo na Revista Ilustrada. O índio foi uma caricatura constante do país, seja como gigante adormecido, seja sugado pelos corruptos. Denunciava manobras parlamentares que prejudicavam o povo e o país exercendo uma visão contrária daquela dos românticos.Promoveu campanhas pela Abolição e República evocando a figura da mulher. Sob seu punho a indígena foi símbolo da abolição no Amazonas e no Ceará (1884). O índio, a mulher, e o negro projetaram a união democrática contra o regime. Agostini era um homem de seu tempo e como crítico impiedoso denunciava a maneira servil dos acadêmicos se expressarem. Seu estilo mordaz teve forte influência de Daumier e, do modelo paradigmático da famosa tela de Delacroix (1830), LIBERDADE GUIANDO O POVO, a partir dos eventos políticos populares que precederam à monarquia de Luis Felipe. Delacroix deu à Liberdade uma roupagem moderna e revolucionária ao projetá-la como Mariana, figura símbolo da Revolução Francesa, que guia o Povo no cenário das barricadas urbanas, sustentando numa das mãos o fuzil e na outra a bandeira branca, azul e vermelha da nação francesa republicana.

Embora a Abolição dos escravos e a proclamação da República resultem do palpável amadurecimento da Nação, a visão oficial sobre o índio permaneceu conservadora. Na ideologia positivista, ele ocupou uma posição servil, infantilizada, dominada pela catequese ou pela superioridade do sistema racional de pensamento conforme o monumento republicano erguido na Cinelândia (RJ, 1910) para enaltecer Floriano Peixoto."

http://www.naya.org.ar/congreso2004/ponencias/solange_padilha.htm

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