terça-feira, 1 de setembro de 2009

A cultura barroca, segundo Maravall.

Características da cultura barroca
1. Cultura dirigida. A cultura barroca oferece as linhas fundamentais de uma visão da sociedade e do homem, pelas quais se orienta o comportamento dos indivíduos que nela vivem. Tal cultura lança mão de meios que se encontram ajustados às circunstâncias nas quais são operados, para manejar, dirigir, governar dos grupos e indivíduos. Trata-se então de uma cultura pensada como instrumento operativo, cujo objeto é atuar sobre certos homens dos quais se possui uma visão determinada, a fim de fazê-los comportar-se, entre si e em relação à sociedade que compõem e ao poder que a rege, de maneira que se mantenha e potencialize a capacidade de autoconservação de tais sociedades. Daí a necessidade de saber como é o homem para servir-se dos recursos mais adequados diante dele: é o conhecimento de si mesmo e o conhecimento dos outros homens. Um dos pressupostos da cultura barroca é a crença segundo a qual é possível apoderar-se do controle dos recursos humanos e aplicá-los na condução dos homens, impulsionando-os na direção de uma crença e de certos modos de conduta. O dirigismo barroco leva ao autoritarismo característico das monarquias absolutistas.
2. Cultura massiva. O barroco destina-se às massas, que conhecem um apogeu demográfico neste período, e que são sensíveis aos instrumentos de ação criados por esta cultura. O século XVII assistiu ao desenvolvimento de modos de vida e de mentalidade de caráter massivo. Para Maravall, o século XVII é uma época de massas, a primeira sem dúvida da história moderna, e o barroco, a primeira cultura que se serve de recursos de ação massiva, o que fica claro pela natureza do teatro, em seus textos e procedimentos cênicos, a devoção externa da religião pós-tridentina, a política de repressão dos Estados, o recurso à imprensa.
3. Cultura urbana. O barroco é uma cultura que tem por palco privilegiado a cidade, o espaço público urbano. Segundo Maravall, o barroco produz-se e desenvolve-se em uma época em que os movimentos demográficos já obrigam a distinguir entre meio rural e sociedade agrária. Surge então essa cultura da cidade, dependente das condições pelas quais se vai expandindo a urbanização, e que operam inclusive sobre zonas rurais próximas, relacionadas com a cidade. O absolutismo exigiu o redimensionamento da cidade como capital. Essa cidade-capital, muito populosa, é que assistirá ao advento do barroco, sob a forma de festas, espetáculos pirotécnicos, honras fúnebres, arcos de triunfo, cortejos espetaculares etc.
4. Cultura conservadora. Havia a preocupação de manter as coisas na sua ordem, reduzindo, ao máximo, o desmoronamento do sistema vigente ameaçado pelo tempo. O absolutismo se levanta para impedir mudanças sociais e políticas e manter energicamente os quadros estamentais da sociedade.


Princípios gerais da cultura barroca, segundo Maravall


1. Valorização do mundo como movimento: percepção do caráter fluido e instável de todas as coisas. A estética barroca vai flagrar o mundo no seu processo de transformação e movimento constantes. As palavras recorrentes na literatura: mobilidade, vicissitude, inconstância. “As coisas todas são móveis e passageiras”. Movimento: princípio que rege a visão de mundo barroca, tanto na ciência, na moral, na economia e na política. Na obra de arte, o equilíbrio é frágil e está sempre ameaçado. A beleza não radica mais na harmonia e na simetria do imutável, mas no movimento incessante.

2. Daí o fato de o homem ser uma figura frágil e dramática num mundo cambiante, onde não há nada para se apoiar com certeza (visão do filósofo Pascal). Diante de um mundo em movimento, restam ao homem a insegurança e a incerteza.

3. Concepção do mundo como teatro: dados
a.) o caráter transitório da existência ( de dor ou de prazer);
b.) rotação ou mudança dos papéis: o que é um hoje, amanhã será outro. Gosto pelos desatinos da fortuna;
c.) a representação: o papel que cada um desempenha na vida não diz respeito à essência das pessoas, mas apenas à sua superfície ou aparência. Concerne à contradição entre ser e valer. Disso resulta o caráter imobilizador do topos do mundo como teatro: nenhum papel neste mundo é definitivo.

4. Mundo como feio e ruim, lugar de guerra, fome, peste, violência e crueldade. Nesse sentido, o barroco é a ressaca do renascimento: o sofrimento diante de uma desmesurada expansão das expectativas.

5. Topos da loucura do mundo: idéia de que todas as coisas estão submetidas a um desarranjo geral, que se aproxima do caos, que põe todas as coisas fora do seu lugar.

6. Visão negativa do homem: homem é lobo do homem. Esse é uma figura frágil e perversa num mundo cambiante. Retoma a afirmação de Plauto e que aparece depois em Hobbes. Preocupação em denunciar os vícios e defeitos humanos, uma vez que o homem é intrinsecamente mal. Homem barroco vive numa emboscada, em posição de defesa e ataque.

7. Gosto pela violência. A violência que grassa pelo mundo é o resultado de uma dada situação histórica. A arte barroca expressa a violência e a crueldade, regozijando-se no espetáculo da truculência sanguinária, e lançando as bases de uma estética da violência. Isto não significa que o século XVII seja mais violento que os outros, mas tão-somente que existe uma percepção mais aguda da violência. O homem barroco é um ser em luta consigo mesmo e com os outros homens (princípio da guerra absolutista). O absolutismo é o regime em que o espetáculo da violência, da dor, do sangue e da morte serve para subordinar as massas, transformando assim a violência em meio de repressão e submissão. As festas e divertimentos públicos configuram o espaço de violência.


8. Atração pela morte e pelo macabro. A ênfase na morte visa a impressionar os vivos e, ao mesmo tempo, acentuar a condição adversa da vida.

9. Festa e desespero. O pessimismo barroco comporta também um barroco de festa e de esplendor, definindo o caráter ambivalente desta cultura, que tem na festa uma de suas principais características. Para Maravall, o caráter festivo não elimina o fundo de azedume e melancolia, de pessimismo e desengano. Mas somente movendo da experiência dolorosa de um estado de crise, que o Barroco reflete ondas que atraem as massas cansadas e as impele a aderir àqueles valores e personagens. O bipolarismo revela-se no riso e no prato diante do espetáculo da vida e das coisas. Na arte barroca, tem-se a criação de um universo grandioso sob muitos aspectos, mas quase sempre hostil e dominado pela fatalidade e por forças ocultas.

10. Visão mercantilista: que prega a conquista do maior número de bens que a natureza oferece. Mas, ao mesmo tempo, acredita-se que a natureza é constituída por um volume de bens e alimentos inalterável, do ponto de vista quantitativo. Ora, a vontade de poder, mais a crença do número finito de bens leva necessariamente os homens a voltarem-se uns contra os outros. Daí o caráter de luta e concorrência da sociedade mercantilista.

11. Interesse pelo homem, de um ponto de vista diferente do do Renascimento. Aqui, privilegia-se o estudo para saber como o homem funciona e como ele se comporta. Porque o barroco concebe a vida como processo, como constante vir a ser. Assim como a vida não resulta acabada, a realidade também é um constante “fazer-se”. Daí a predileção pela pintura incompleta, pela arquitetura que esconde os contornos precisos, pela literatura emblemática que deixa ao leitor a tarefa de conclui-la. Como disse Grácian, “não se nasce completo”. O homem realiza, então, sobre si mesmo e sobre os outros um trabalho de oleiro. Indagar, conhecer, experimentar, fazer da vida o objeto final de toda investigação - eis a proposta do homem barroco. Segundo Maravall, o homem barroco revela-se extremamente atento a uma “arte do comportamento” , traduzindo-se na reflexão sobre a prática do comportamento humano em geral. Em El Criticón, Gracián revela o interesse que tem o homem pelo modo de ser, pela vida, pelo caráter ininterrupto desta, a sua condição de realizar-se incessantemente. As obras literárias do Barroco vão expressar a inquieta preocupação do homem em fazer-se, a si mesmo, num constante exercício de escolha.

12. Tendência a revelar a experiência humana, mediante a observação singularizada do ser humano, de modo a promover o afastamento do universal dos fenômenos humanos e valorizar a elaboração do individual. Assim, Rembrandt vai buscar o testemunho, transformado em documento plástico, de pessoas envelhecidas, em cujos corpos a passagem da vida teve uma bem visível ação individualizadora. Este processo corresponde à mudança que a noção de experiência sofre no Renascimento – que vê no mundo fenomênico a manifestação ou reflexo de uma realidade objetiva - e no Barroco, para o qual a experiência é tradução de uma visão interior. Vale observar que o apelo à individualização da experiência suscita um sentimento de mudança e variação, que provoca, por sua vez, a afirmação do movimento inerente a todas as coisas.

Recursos da cultura barroca
a. Extremosidade: a simplicidade ou a exuberância levadas ao limite. Gosto pelo exagero: a estética barroca propõe o exagero e a surpresa, inventada para assombrar o público. Predomínio do dramático da expressão, para revelar os casos de extrema tensão na experiência humana das coisas e dos outros homens. A matéria heróica, por exemplo, é muito adequada para propiciar situações de extremosidade. Trata-se, em suma, de impressionar através do extremado e o desmedido. Nesse sentido, o barroco não pretende dar testemunho de uma existência satisfeita e em repouso, mas de um estado de excitação e turbulência.
b. Suspense ou suspensão. O esforço para cortar de imediato um sentimento provoca uma reação que altera o curso normal do desenvolvimento afetivo da pessoa e debilita sua resistência. Muda-se o rumo da atenção e do sentimento e o resultado é o maravilhar-se. Objetivo: atrair e sujeitar, com maior afinco, aqueles a quem se dirige. A suspensão tem a ver também com a técnica do inacabado, que permite que o olho que contempla termine por propor o que falta e por propô-lo a sua maneira. Daí a pintura de manchas e borrões, de pinceladas distantes. O receptor da obra barroca que, surpreendido ao vê-la inacabada ou tão irregularmente construída, fica por alguns instantes em suspenso, sentindo-se, depois, compelido a participar dela. A técnica do suspense relaciona-se com a utilização de recursos do móvel e do cambiante, dos equilíbrios instáveis, do inacabado, do estranho e extraordinário.
c. Difícil ou obscuro. O obscuro opera sobre o público da seguinte maneira: atraindo-o, sujeitando sua atenção, tornando-o partícipe da obra, obrigando-o a esforçar-se em seu deciframento, provocando por essa via uma fixação da influência da obra sobre o leitor. Há no século XVII, um reiterado elogio da dificuldade, que está em ser colocado pedagogicamente: um bom e eficaz ensinamento deve servir-se do difícil, e portanto, do caminho do obscuro para que se obtenha, como resultado, um enraizamento mais sólido do saber. Na arte, o difícil e obscuro aparecem sob a forma de deformações e distorções do objeto.
d. Novidade. Os critérios para a apreciação de uma obra são as qualidades de novidade, estranheza, invenção, extravagância, ruptura de normas, que tem a ver com a necessidade de buscar a dificuldade. O novo agrada, o nunca antes visto atrai, a invenção que estréia embeleza; mas todas as aparentes audácias serão permitidas desde que não afetem a base das crenças sobre as quais se assenta a estrutura social da monarquia absolutista; ao contrário, servindo-se dessas novidades como veículos, introduz-se mais facilmente a propaganda persuasiva a favor do estabelecido. Como o barroco prefere apelar a recursos extra-racionais que movam a vontade, a novidade apresenta-se como um recurso privilegiado. De modo geral, o obscuro e o difícil, o novo e o desconhecido, o raro e o extravagante, o exótico, tudo isso entra como recurso eficaz na perspectiva barroca, que se propõe a mover as vontades, deixando-as em suspenso, provocando admiração e paixão por aquilo que antes não haviam visto.
e. Artifício. O homem barroco prefere a natureza transformada pela arte à natureza simplesmente. “Nunca a natureza produz algo em benefício do homem que não necessite que a arte e seu engenho o aperfeiçoem”. Daí o gosto pelas invenções mecânicas, pelo relógio, pelo teatro, pelas invenções cênicas inauditas.
f. Jogos de luz e sombra. Relacionam-se a obtenção de resultados de surpresa, que apelam para o extra-racional. Em um mundo mutável, variado, reformável, o gosto pelas mudanças e pelas metamorfoses se satisfaz nos jogos cênicos e no interesse apaixonado pelos artifícios nos recursos das tramóias.
g. Festa. As festas são extremamente comuns no Barroco, e se caracterizam pelo alto investimento, pela exuberância e luxo. A festa oferece uma ocasião para atuar sobre a multidão, devendo ser portanto grandiosa. A festa funciona como um instrumento de afirmação de caráter político e religioso. E como tal, ela deve contar com alguma invenção, um mecanismo engenhoso, um artefato inusitado, como fogos de artifício.

13. Gosto pela variedade. Um mundo dinâmico e que muda é, necessariamente, um mundo vário. A variedade faz parte desta concepção barroca. Contra a unidade do renascimento, o barroco vai proclamar que “assim é a vida, sempre variável, nunca una, e ao fim nada”. O belo é variado: “a beleza da natureza consiste na sua variedade”. Na literatura política, a variedade torna-se um topos: os povos, os costumes, os caracteres. Diante desta diversidade, o governo deve empreender um conhecimento sistemático para que possa ser exercido de forma eficaz. A vida do homem também é vária: “desde a infância até a velhice tudo é variedade” (Suárez de Figueroa).

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