quarta-feira, 13 de maio de 2009

O cinema e a luz dos trópicos, segundo Carlos Ebert

Desafio da Luz Tropical
Carlos Ebert, ABC
"Venho pensando há tempos nesta questão, sem contudo me animar a colocar em letra de forma as reflexões a que fui levado, e algumas das conclusões a que cheguei. A existência da página "Textos" no site da ABC me animou a ordenar estas idéias. Espero que possam ter alguma serventia para nós, diretores de fotografia, que temos tanta carência de textos reflexivos sobre a nossa atividade. Recentemente, em entrevista concedida a Lauro Escorel e Tuca Moraes para o site da ABC, nosso decano Mário Carneiro, fez alguns comentários que me serviram de ponto de partida para encaminhar a questão da luz nos trópicos (1). Dizia o Mário naquela ocasião: "Aqui, por exemplo, você sai no sol brasileiro. Você está com 8 diafragmas entre a luz e a sombra! É um inferno. E isso não vai mudar. Nosso clima é esse. Se quiser amansar isso, fazer fotografia tipo Almendros (2), final de tarde. Duas horas de tarde, duas horas de manhã... No meio do dia faz uns planinhos de interior. Acaba ficando uma coisa cansativa, porque parece que só há duas iluminações aqui na terra: Quando o sol nasce e quando o sol se põe. Eu gosto de também ousar. De luzes bem violentas. " A lembrança deste trecho da entrevista me ocorreu ao assistir "Eu, Tu, Eles" 2000, dirigido por Andruscha Waddington e fotografado por Breno Silveira, onde a opção de filmar apenas nas horas de sol baixo foi levada às últimas conseqüências. Apesar de reconhecer os méritos do filme e de apreciar seu tratamento fotográfico, fiquei com a impressão o tempo todo de que o filme não se passava no agreste nordestino, onde uma das características da luz é a sua posição zenital durante as horas do meio do dia. Disso resultam sombras acentuadas e um "esfriamento" das cores resultante da alta temperatura de cor da luz do céu. Ao optar pelo tom dourado e pelas horas próximas ao amanhecer e entardecer, perdeu-se a meu ver, a imagem árida e impactante que caracteriza o sertão nordestino. Eu, Tu, Eles: As sombras longas das horas vespertinas e matutinas. Voltando a entrevista do Mário: "Porque a luz e a cor brasileira têm uma especificidade brasileira. Ela tem um alto-contraste de cor. Porque geralmente a paisagem brasileira tem cor de barro avermelhado e as árvores verdes. Então, é um contraste de cor de duas primárias, vermelha e verde. Isso somado a esse contraste de valor que vai até oito diafragmas. Cria assim momentos em que fica muito difícil você domar um pouco essa imagem. Então você tem que assumir um pouco essa imagem." Se acrescentarmos a terceira primária, o azul do céu, saturadíssimo nos trópicos, teremos então o paroxismo de contraste cromático que é a paisagem brasileira. -o-0-o- Os pintores que retrataram o Brasil já tinham se dado conta deste problema desde o século XVIII. E poucos foram os que assumiram o desafio de reproduzir os contrastes de valor e cromático presentes nas horas do meio do dia. Dentro do meu limitado conhecimento da pintura paisagística brasileira, me ocorre apenas o exemplo de João Batista da Costa (1865-1926) que pintou algumas paisagens cariocas com o sol quase a pino, conseguindo efeitos interessantes. Vista da Igrejinha de Copacabana, J.B. da Costa - 1895 Nesta tela; "Vista da Igrejinha de Copacabana" , Batista da Costa aproveita a luz do meio do dia para ressaltar o contraste cromático entre os verdes da vegetação próxima e distante e os azuis do mar e do céu aos quais atribui valores de luminancia bem próximos, o que resulta num maior contraste cromático. O mesmo local havia sido retratado cinco anos antes por Giambattista Castagneto (1851-1900), outro artista do "Grupo Grimm" (3), que embora considerado um pintor artística e tecnicamente superior à Batista da Costa, refugia-se na suavidade da "hora mágica", evitando o contraste cromático entre Vista da Igrejinha de Copacabana - 1890: a versão suavizada de Castagneto as cores vivas do local o que resulta numa luz "europeizada", suavizada, tão ao gosto do público da época. Antônio Parreiras (1860-1937), em alguns trabalhos também ousou retratar a luz tropical, registrando magistralmente em algumas paisagens o azulado intenso que ocorre nos trópicos quando observamos a sombra do sol a pino. Infelizmente não foi possível encontrar nenhum trabalho do pintor fluminense para ilustrar esta característica. É ainda Mario Carneiro quem observa que o pintor francês Edouard Manet (1832-1883), de passagem pelo Brasil na sua juventude, como grumete na marinha mercante, teria comentado: "Esse é um país muito difícil de ser pintado, eu não consigo pegar essa luz daqui." o-0-o Em nossa cinematografia, antes da cor ser introduzida, o problema da reprodução da luz tropical já existia principalmente com relação ao contraste de luminância. No tempo dos filmes ortocromáticos, o azul do céu resultava num branco lavado e o tom de pele moreno resultava um pouco mais escuro do que era na realidade. Com as emulsões pancromáticas , a adoção dos filtros amarelo, laranja e vermelho para escurecer o azul do céu (influência dos westerns americanos e do cinema mexicano, principalmente dos filmes fotografados por Gabriel Figueroa) e o uso de rebatedores , refletores de arco voltáico e telas difusoras, o contraste de valor foi sendo aos poucos domesticado. Nos filmes da Vera Cruz, fotografados por europeus, este controle sobre a luz tropical atinge a extremos, resultando numa crescente descaracterização da luz brasileira. Situado na fronteira entre o cinema acadêmico e o cinema novo, o episódio "Pedreira de São Diogo" de "Cinco Vezes Favela" 1961, dirigido por Leon Hirzman e fotografado por Ozen Sermet, apresenta uma fotografia acadêmica, com os contrastes de luminancia compensados pelo uso às vezes ostensivo de rebatedores. Como Leon não escondia o seu apreço pelos filmes de Eisenstein, os enquadramentos estetizantes e a luz modelada serviram na medida à narrativa. No mesmo filme, o episódio "Couro de Gato " dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e fotografado pelo jovem Mário Carneiro, vai em direção oposta, investindo numa estética documental e numa fotografia de luz existente, onde a continuidade não é o mais importante. Um dos filmes seminais na questão da reprodução da luz tropical na fase do branco e preto, foi "Os Fuzis" 1963, de Rui Guerra, fotografado por Ricardo Aronovich, argentino de nascimento, e na época recém chegado ao Brasil. Em entrevista a ABC, ele comenta: " Essa luz nordestina me fascinou e quebrou todos os meus esquemas conhecidos da Argentina, onde a luz é mais inclinada, (não tanto quanto a européia, que se assemelha a da Patagônia), e mais controlável.... Tenho uma necessidade quase fisiológica de ver, de olhar, de viver pelo menos uma vez ao ano, essa luz que vocês tem a sorte de ter aí. É um pouco como se ela tivesse se fixado na minha retina... E vejo filmes as vezes, fotografados por grandes diretores de fotografia europeus, em lugares que poderiam se parecer com a luz do nordeste, da Bahia, ou do sertão (embora esta seja única), muito bem fotografados, certinhos até, mas que fora a qualidade técnica e mesmo pictórica, não refletem na fotografía, a realidade da luz, da temperatura ou a realidade social da locação em questão". Aqui Aronovich sintetiza o ponto central da questão que estou tentanto enfocar: fazer a cinematografia refletir a realidade da luz local. Outros dois filmes do início do Cinema Novo contribuiram de forma notável para encontrar a luz tropical no branco e preto. São eles; "Vidas Secas" 1963, de Nelson Pereira dos Santos e "Deus e o Diabo da Terra do Sol" 1963, de Glauber Rocha. No primeiro, a dupla de fotógrafos Luís Carlos Barreto e José Rosa conduziu uma experiência de eliminar qualquer filtragem corretiva ("lente nua" no dizer de José Medeiros), e expor para a sombra. deixando as altas luzes "estourarem". O resultado, que lembra muito as xilogravuras que ilustram a literatura de cordel, se mostrou altamente eficaz e integrado à narrativa. Antônio das Mortes em ação: A inevitabilidade da beleza do sertão. Em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", Waldemar Lima foi pelo mesmo caminho da super-exposição, embora sua intenção final de ter cópias com alto contraste tenha se frustrado pelo empenho do laboratório (Lider - Rio), em conseguir cópias "corretas". Revendo o filme telecinado, fiquei impressionado com a latitude do antigo Plus-X, pois mesmo expondo para a sombra, se vêem detalhes nas nuvens e no chão de areião. Falando à ABC, Waldemar observou: "Ele (Glauber) queria uma fotografia dura, branca, que retratasse a caatinga e que não fosse um mero acessório pictórico dentro do filme. Não queria uma fotografia bonita. Ele partiu do princípio de que a fotografia não devia ser bonita. E como poderia fazer fotografia não bonita na caatinga, onde qualquer mandacaru bem enquadrado ou contra luz da uma fotografia bonita? Minha proposta foi super-expor o filme, ter um negativo denso e ter uma fotografia branca. Esse foi o princípio do nosso papo... Fiz um teste para o Glauber ver. Filmei durante o dia, sol a pino, uma pessoa com um chapéu largo fazendo sombra escura no rosto e a sombra ficou clara. Vegetação cinza claro. E era isso que a gente queria. O Plus-X tinha 64 ASA, e filmei com 16 ASA. Dois stops de super-exposição." Certamente são poucos os locais no planeta onde se pode fotografar um filme inteiro com um índice de exposição de 12 ISO... Mais adiante Lima esclarece mais sobre outros motivos que o levaram a aquela escolha: " A fotografia estourada além de ter sido uma definição de estilo fotográfico, evitava o uso de rebatedores. Nós não podíamos subir as escadarias do Monte Santo cheios de rebatedores. A solução era aquela mesma; super-exposição." Vidas Secas: Expondo para sombra e deixando os contrastes explodirem L.C. Barreto comentando a fotografia de "Vidas Secas", diz mais ou menos a mesma coisa: " Achávamos que a fotografia devia ser sem luz artificial, sem filtros. Na verdade, uma coisa bem primitiva.... A fotografia de "Vidas Secas" buscava a textura da gravura. Uma fotografia bem contrastada, onde a luz era medida pelo rosto , o tom mais baixo, e o resto ficava com luminosidade estourada, transmitindo a verdadeira luz do Nordeste. Diferente do que se costumava fazer no cinema, com filtros, de maneira que o Nordeste parecia sempre meio nublado, que ia chover, ou como um jardim, sem aquela luminosidade agressiva... "

Nenhum comentário:

Postar um comentário