terça-feira, 3 de novembro de 2009

Os momentos finais de Madame Bovary

"Ela voltou a cabeça lentamente e pareceu possuída de alegria ao ver subitamente a estola roxa, reencontrando sem dúvida, no meio de uma calma extraordinária, o deleite perdido desde os seus primeiros impulsos místicos, com visões de uma bem-aventurança eterna que se aproximava.
O padre levantou-se para pegar no crucifixo, então ela estendeu o pescoço como alguém que tem sede e, encostando os lábios ao corpo do Homem-Deus, depôs nele com toda a sua força agonizante o maior beijo de amor que jamais dera.
Seguidamente, ele recitou o Misereatur e o Indulgentiam, molhou o polegar direito no azeite e começou a unção: primeiro nos olhos, que tanto haviam cobiçado todas as sumptuosidades terrestres, depois nas narinas, ávidas de brisas cálidas e perfumes amorosos, depois na boca, que se abria para a mentira, que gemera de orgulho e gritara de luxúria, depois nas mãos, que se deleitavam com suaves contactos, e, finalmente, nas plantas dos pés, tão rápidos outrora quando corria a saciar os seus desejos e que não voltariam a caminhar.
O padre limpou os dedos, deitou ao fogo os pedaços de algodão molhados de azeite e foi sentar-se ao pé da moribunda para Lhe dizer que devia agora unir os seus sofrimentos aos de Jesus Cristo e entregar-se à misericórdia divina.
Quando terminou as suas exortações, tentou meter-lhe na mão um círio benzido, símbolo das glórias celestes de que em breve estaria rodeada. Emma, demasiado enfraquecida, não pôde fechar os dedos e o círio, sem o padre Bournisien a segurá-lo, teria caído no chão.
Entretanto ela ficou menos pálida e o seu rosto tinha uma expressão de serenidade, como se o sacramento a tivesse curado.
O padre não deixou de fazer referência ao facto, explicou até ao Bovary que o Senhor, algumas vezes, prolongava a vida das pessoas quando julgava conveniente para a sua salvação, e Charles lembrou-se do dia em que, assim quase a morrer, ela recebera a comunhão.
"Talvez não valha a pena desesperar", pensou ele.
Com efeito, ela olhou à sua volta, lentamente, como alguém que despertasse de um sonho, depois, falando distintamente, pediu o seu espelho, e ficou algum tempo a olhar-se, até ao momento em que grandes lágrimas se lhe desprenderam dos olhos.
Então atirou a cabeça para trás e, soltando um suspiro, deixou-se cair sobre a almofada.
O peito pôs-se-lhe logo a arquejar aceleradamente. A língua saiu-lhe toda da boca, os olhos, revirando-se, desmaiaram como dois globos de lâmpadas que se extinguissem, fazendo crer que já estivesse morta, se não fosse o pavoroso ritmo das costelas, sacudidas por uma respiração furiosa, como se a alma estivesse dando pulos para se libertar. Félicité ajoelhou-se diante do crucifixo, e até o próprio farmacêutico flectiu um pouco os joelhos, enquanto o doutor Canivet olhava vagamente na direcção da praça. Bournisien estava novamente entregue à oração, com o rosto inclinado para a beira da alcova, a sua longa sotaina negra arrastando atrás pelo chão. Charles ajoelhara do outro lado, com os braços estendidos para Emma.
Tinha-lhe agarrado as mãos e segurava-as, estremecendo a cada batida do coração, como que em reflexo do desabar de uma ruína. À medida que o estertor se tornava mais forte, o clérigo precipitava as suas orações, misturavam-se com os soluços abafados de Bovary, e às vezes tudo parecia confundir-se no surdo murmúrio das sílabas do latim, que soavam como dobre de sinos.
Subitamente ouviu-se no passeio um ruído de grossos tamancos, juntamente com o arrastar de um cajado, e uma voz rouca que começou a cantar:

Quantas vezes um belo dia de calor
Faz sonhar as meninas com amor.

Emma ergueu-se como um cadáver galvanizado, com os cabelos soltos, o olhar fixo, a boca aberta.

Para apanhar as espigas
Que os moços foram ceifar,
Na noite com as raparigas
Andou no campo a cantar.

- O cego! - exclamou ela.
E pôs-se a rir, com um riso atroz, frenético, desesperado, julgando ver o rosto horrendo do miserável, que se erguia nas trevas eternas como um espantalho.

Mas tanto o vento soprou
Que a saia lhe levantou!

Uma convulsão fê-la cair de novo sobre a cama. Todos se aproximaram. Deixara de existir."

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